domingo, 25 de maio de 2014

Europa rica coloniza os parceiros pobres na crise do sistema imperial

Assusta a imagem que hoje o mundo dá, de uma nova forma de colonização, agora introduzida na Europa pela União Europeia e o imperialismo liderado pelos Estados Unidos, de autofagia dos mais pobres da Europa que antes foram impérios, mas dependentes dos vizinhos França, Inglaterra, e depois Alemanha e Holanda, que investiram nas suas próprias forças produtivas e nas instituições de Estados modernos servindo-se dos "descobrimentos" dos grandes navegadores de Portugal e Espanha. 


Assiste-se à venda das pátrias pelos governantes de turno com a destruição dos empregos e fontes de produção nacional, empobrecimento generalizado da população e emigração forçada da mão de obra já formada, deixando a perspectiva salazarista do "jardim à beira-mar plantado" e a oferta de ambiente histórico e bucólico com excelente culinária para atrair o turismo rico nas férias e os especuladores ligados ao setor financeiro globalizado.

A cobiça faz com que os governantes de direita aceitem o dinheiro vindo da China dirigida por um Partido Comunista, e cessem as constantes denúncias contra uma ideologia com meta socialista que procuram destruir, como o fizeram com a URSS. Para mercenários, dinheiro não tem ideologia e, apesar da grave crise sistêmica, acreditam que os chineses vão ajudá-los a salvar o capitalismo. Não só a China, mas os Brics, que antes eram escravizados e pagavam o dízimo pela espoliação considerada "civilizadora".

A China e a transição para o socialismo


Em Portugal e em vários países da África assiste-se à penetração econômica da China, como ocorre um pouco por todo o mundo em desenvolvimento. Primeiro foi o comércio de utilidades domésticas, roupas e calçados, em pequenas lojas. Agora são grandes espaços comerciais que já se tornaram indispensáveis à população que não tem meios para frequentar o comércio de produtos de famosas marcas de empresas multinacionais, que liquidaram a produção e o comércio tradicional português dentro do programa de modernização imposto pela União Europeia.

Mais recentemente tiveram início os investimentos chineses nas empresas nacionais privatizadas, como é o caso da EDP (eletricidade), assim como na aquisição imobiliária de grandes áreas urbanas em fase de recuperação do patrimônio histórico. Tal como tem feito na África, a China investe na criação de infraestrutura e impulsiona as fontes de produção tradicionais.

Marx escreveu em 1850, sob o título Deslocamento do Centro Gravitacional Mundial, onde aponta a corrida ao ouro californiano como uma transformação importantíssima que leva os países mais fortes a reorganizarem os objetivos comerciais:

Vamos agora ocupar-nos da América, onde sucedeu algo mais importante do que a revolução de Fevereiro [1848]: a descoberta das minas de ouro californianas. Dezoito meses após o acontecimento já é possível prever que terá efeitos mais consideráveis do que a própria descoberta da América. Ao longo de três séculos todo o comércio da Europa em direção ao Pacífico contornou, com paciência admirável, o cabo da Boa Esperança ou o cabo Horn. Todos os projetos de praticar uma abertura no istmo do Panamá falharam devido às rivalidades e invejas mesquinhas dos povos comerciantes.

Dezoito meses após a descoberta das minas de ouro californianas, os ianques começaram já a construir uma estrada de ferro, uma grande estrada e um canal no Golfo do México. E já existe uma linha regular de barcos a vapor de Nova York a Chagres, do Panamá a São Francisco, concentrando-se no Panamá o comércio com o Pacífico e deixando de se utilizar a rota do cabo Horn. O vasto litoral da Califórnia, com 30 graus de latitude, um dos mais belos e mais férteis do mundo, por assim dizer desabitado, vai se transformando rapidamente num rico país civilizado, densamente povoado por homens de todas as raças, do ianque ao chinês, ao negro, ao índio e ao mulato, do crioulo e mestiço ao europeu. O ouro californiano corre abundante em direção à América e à costa asiática do Pacífico, e os povos bárbaros mais passivos são arrastados para o comércio mundial e para a civilização.

Uma segunda vez o comércio mundial muda de direção. O que eram, na Antiguidade, Tir, Cartago e Alexandria, na Idade Média, Gênova e Veneza, e, até agora, Londres e Liverpool, a saber, os empórios do comércio mundial, serão no futuro Nova York e São Francisco, São João de Nicarágua e Leão, Chagres e Panamá. O centro de gravidade do mercado mundial era a Itália, na Idade Média, a Inglaterra na era moderna, e é hoje a parte meridional da península norte-americana.

Graças ao ouro californiano e à energia inesgotável dos ianques, os dois lados do Pacífico serão em breve tão povoados e tão ativos no comércio e na indústria como o é atualmente a costa de Boston a Nova Orleans. O oceano Pacífico desempenhará no futuro o mesmo papel que foi do Atlântico na nossa era e do Mediterrâneo na Antiguidade: o de grande via marítima do comércio mundial, e o oceano Atlântico descerá ao nível de um mar interior, como é hoje o caso do Mediterrâneo.

E termina prevendo: "É muito provável que o socialismo chinês se assemelhe ao europeu como a filosofia chinesa ao hegelianismo. Qualquer que seja a forma, podemos alegrar-nos com o fato de que o Império mais antigo e sólido do mundo tenha sido arrastado em oito anos, pelos fardos de algodão dos burgueses da Inglaterra, até a iminência de uma convulsão social que, qualquer que seja o caso, deve ter consequências importantíssimas para a civilização. E, quando os reacionários europeus, na sua já próxima fuga, chegarem enfim junto à Muralha da China, às portas que supõem abrir-se como fortaleza da reação e do conservadorismo, quem sabe se não lerão ali: República Chinesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade".

Assim escreveu Marx em 1850 a partir do seu método de observação e análise histórica do sistema político, econômico e social dominante. Nada mais atual neste confuso século 21 apesar da distância de 180 anos.

A China cria nova realidade mundial - o pensamento oriental


Ao contrário da cultura ocidental capitalista, a perspectiva oriental é totalizante ou holística, sem definir os limites da abrangência. Contraria os modelos e métodos que a cultura ocidental cultiva da sua herança medieval conservada ao longo dos séculos, apesar de terem sido abertos difíceis e sinuosos caminhos em várias áreas do pensamento (na arte, na ciência, na filosofia), que contrariavam o conservadorismo dominante.

Sempre os inovadores foram considerados rebeldes, revolucionários e perigosos, mas demonstraram a necessidade de liberdade de pensamento que permitia a abertura de portas flexíveis ao desconhecido sobretudo no século 19. Isto propiciou a abertura, com diferentes níveis de integração, a elementos trazidos pela cultura oriental.

Além dos produtos importados durante a época dos descobrimentos – porcelanas, seda, especiarias – o estudo da arte na Europa no fim do século 19 recebeu significativa influência dos orientais, alterando profundamente os conceitos teóricos presos aos estritos princípios da cultura ocidental e abrindo como caminho a Arte Nova. Em outras áreas, científicas e técnicas, a presença de traços vindos do Oriente é mais sutil por se tratarem de alterações no pensamento filosófico, com a consequente abertura à liberdade e criatividade no sentido de uma visão holística e integradora.

Modernamente as artes marciais, a educação física, a psicologia e a medicina orientais, começam a ser absorvidas nas escolas e universidades do mundo ocidental depois de terem sido amplamente praticados junto às populações que não aceitaram os preconceitos de uma elite social que classificava tais usos como sendo acientíficos e de charlatanismo. O reconhecimento da influência do pensamento oriental na medicina ocidental é ainda um tabu por razões de competição intelectual e de mercado da sua indústria de base. Mesmo assim, as técnicas de acupuntura já são matéria de cursos universitários, tal como a busca do equilíbrio físico/mental, tomado o organismo como um todo integrado, foi adotada pela medicina ocidental e está na base do grande desenvolvimento do conhecimento neurológico.

A ideologia intrínseca ao caminho chinês

A China que hoje caminha a passos de gigante no sentido de se tornar uma potência reconhecida como tal pelo mundo ocidental, segue a nível político e econômico o mesmo caminho que a sua filosofia, artes e ciências seguiram desde o fim do século 19 na aproximação com o ocidente, servindo-se dessas primeiras conquistas sem necessidade de definir politicamente a sua função no caminho ideológico. Tanto a sua capacidade de criar riqueza suficiente para absorver os títulos do Estado norte-americano e comercializar com qualquer país rico, como para investir nos países em desenvolvimento criando bases para a produção nacional e proporcionar no seu próprio território a modernização da infraestrutura e de toda a estrutura de produção para competir no mercado capitalista, tem permitido retirar a população (de dois bilhões de pessoas) do nível de miséria que suportava, e estender os benefícios de um verdadeiro Estado Social (que só existe em alguns países nórdicos pequenos). Evidentemente a adoção de modelos ocidentais modernos gera contradições internas difíceis de superar, sobretudo pela imposição de um ritmo de ação inadequado aos seus padrões culturais.

O tempo necessário para sair do feudalismo e poder competir com os países desenvolvidos do sistema capitalista foi, e continua a ser, muito menor do que aqueles levaram para desenvolver a sua economia e urbanizar as suas cidades criando um sistema social de profundas diferenças no atendimento das classes e na distribuição da riqueza. O controle exercido pelo Partido Comunista da China sobre o governo e todos os programas de desenvolvimento tem permitido uma estratégia segura comprometida exclusivamente com o equilíbrio da política externa e a melhoria das condições internas de desenvolvimento e de qualidade de vida.

Na China as contradições com um projeto que tem por meta o sistema socialista vão sendo reduzidas paulatinamente, como a aplicação de uma legislação do trabalho e a substituição das fontes de energia para eliminar a poluição, conquistados pelos trabalhadores nos países capitalistas, assim como a construção de infraestruturas para levar o benefício da modernização nacional a todo o extenso território com as suas diferenças climáticas e culturais.

A pressão do imperialismo mantém-se, mas caem os preconceitos com a expansão democrática

Tal como sofreram os países socialistas liderados pela URSS, a China é obrigada a investir grande parte do seu orçamento nas Forças Armadas, nas investigações científicas espaciais e no sistema de informações para todo o planeta, para garantir a segurança nacional e do seu projeto de desenvolvimento com meta socialista.

A solidariedade dos povos com a China depende do entendimento que se alcance das diferenças culturais e filosóficas que existem mas não separam, os que lutam pela meta socialista para todas as nações. O que até hoje foi considerado como o pensamento "ocidental", preso ao sistema capitalista e à cultura de origem judaica e cristã, alimentou preconceitos de valor estratégico contra culturas orientais e árabes.

O século 21 tem coincidido com a queda de arraigados preconceitos criados para favorecer os sistemas de domínio colonial, neocolonial, racista e machista, de elites poderosas e de uma pretensa superioridade humana sobre os que apresentam diferenças físicas ou culturais. Como resultante do embate histórico que se verificou ao longo dos últimos séculos emergiu uma consciência de cidadania que permeia os trabalhadores em todo o planeta e o sistema capitalista enfrentou crises que foram superadas em prejuízo do seu próprio equilíbrio.

A filosofia milenar oriental sempre apontou como caminho o equilíbrio e a observação da realidade para que a humanidade alcance o seu desenvolvimento aplicando, passo a passo, a sua energia e criatividade na construção da vida. Será este o caminho da China? Depende não só do seu governo e Partido Comunista como dos povos e suas respectivas forças revolucionárias.

Integração cultural e consciência de autonomia dos povos
O sistema capitalista no mundo "ocidental", até hoje vigente nos países da Europa e nas Américas, Africa e Ásia, nos centros de poder financeiro e nas nações que foram colonizadas e mantêm vínculos de neocolonização, tem sido confrontado com a emergência de características do pensamento oriental e da dinâmica histórica das sociedades em evolução, que acentuam as contradições internas próprias de um modelo fechado submetido ao comportamento do mercado e ao autoritarismo de uma elite financeira.

As sucessivas crises do sistema capitalista que sempre foram buscar nos países menos desenvolvidos os recursos para fortalecer o setor financeiro dos que concentram o poder político e militar, foram estimulando, contraditoriamente, o fortalecimento da luta social pela democracia, a qual por oito décadas contou com a liderança da URSS que expandiu pelo Terceiro Mundo as sementes da independência nacional e da participação popular no desenvolvimento dos seus países.

As duas grandes guerras foram orientadas contra o surgimento do sistema socialista pelas forças da Revolução em 1917 na Rússia, mas as ambições expansionistas da liderança nazifascista levou à necessária aliança entre as forças militares da Europa e dos Estados Unidos com a Rússia Socialista para alcançar a vitória contra a Alemanha, Itália e Japão que representavam a chefia das forças agressoras. Em seguida, ao final da Segunda Guerra, começou a Guerra Fria dos países capitalistas contra a União Soviética e uma perseguição aos militantes comunistas em todo o mundo, para impedir que os movimentos sociais de emancipação social escapassem ao controle ideológico dos governantes vigiados pelo sistema capitalista.

A meta expansionista foi apropriada pelos Estados Unidos com pretextos de intervenção pacificadora com apoio da ONU moldando os princípios democráticos, de libertação nacional e direitos humanos, ao programa da Social Democracia europeia nascida na velha Alemanha com Bismark.

Durante várias décadas estas forças que se somaram em torno da primeira potência mundial (EUA) com um crescente poderio militar, econômico e tecnológico, apoiaram governos ditatoriais – como a Grécia, Espanha e Portugal que eram aliados Hitler – e nos países subdesenvolvidos, onde foram criados sistemas sindicais e legislação de trabalho e segurança social que mantinham o Estado (dito) Social sob a tutela do ditador ou de presidentes eleitos dentro dos estreitos limites impostos pelo sistema financeiro e jurídico superiormente fiscalizados. Na Europa, sob o comando dos EUA o Clube de Bildenberg manteve em fogo lento o imperialismo enfeitado pelas monarquias sobreviventes já adaptadas às repúblicas como poder moderador e de exceção se necessário, atraindo políticos e intelectuais destacados para serem treinados para posições de influência através de instituições culturais, de comunicação social e de governos.

Apesar dos múltiplos problemas, que inclusive destruíram a União Soviética e o sistema socialista implantado na Europa durante 80 anos, os povos tomaram consciência dos verdadeiros caminhos para a sua libertação e desenvolvimento nacional sem a tutela de um poder financeiro e militar externo. A essência dos princípios democráticos divulgados na Revolução Francesa e com forte repercussão na Independência dos Estados Unidos, levantados como meta revolucionária pela URSS, foram sendo posteriormente deturpados pelo poder imperial centralizado e mencionado apenas na categoria de utopia.

A violência do imperialismo desperta os humanistas

As várias tentativas para estabelecer governos democráticos e populares foram afogadas em sangue, como o de Allende no Chile, Lumumba na África, e de tantos líderes africanos e asiáticos que não se submeteram às ordens externas. A função de "polícia" planetária, exercida pelos serviços de inteligência dos países mais ricos, utilizou recursos criminosos para eliminar fisicamente os líderes que surgiam em todas as regiões, como recentemente se provou ter sido assassinado Arafat, herói palestino, por determinação do Governo de Israel, assim como o foi o primeiro Presidente de Moçambique Samora Machel por forças anti-revolucionárias na África.

A guerra dos Estados Unidos contra o Vietnã fracassou devido à capacidade de resistência daquele povo e inteligência de líderes como Ho Chi Min e Giap, e a consciência democrática despertada em todo o mundo, inclusive na sociedade norte-americana, que repudiou e denunciou a barbárie imperialista enfraquecendo politicamente o exército invasor.

Com a formação da União Europeia pelo Clube de Bilderberg (logo após o final da guerra mundial) e apoiada pelos Estados Unidos, a derrubada de governos e assassinato de líderes e civis na Europa (Iugoslávia), na Ásia Central (Afeganistão, Paquistão), no Oriente Médio (Iraque) e norte da África (Líbia, Egito) passou a ser feito abertamente pelas forças militares da Otan e dos países associados com o falso pretexto da pacificação e defesa dos direitos humanos. Onde ainda não pode invadir e bombardear, os seus agentes secretos estimulam e provocam conflitos armados internos (Iugoslávia, Egito, Síria, Turquia e países de África onde o atraso causado pela colonização e neocolonização, agravado pelos projetos de desenvolvimento financiados pelo Banco Mundial que destruíram tradições locais e a terra arável, deixou a população na miséria absoluta). Diante da estratégia sucessivamente aplicada pelos sumo poderes do sistema capitalista, e em busca de formas de desenvolvimento para sobreviverem, surgem líderes capazes de atrair o apoio popular, de militantes sociais e de esquerda, de Igrejas e associações que têm capacidade para eleger representantes legítimos das populações.

Depois das independências das ex-colônias na África e em Timor onde surgiram líderes democratas, outros alcançaram o poder nos países ainda subdesenvolvidos contra os interesses imperiais: Lula no Brasil, Chaves na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correia no Equador, Kirchner na Argentina, abriram caminho para a integração de Cuba nas organizações latino-americanas, com sua poderosa experiência socialista que repercute em outras nações da América Latina e reflete em outros continentes como apoio às suas formas de luta específicas pela democracia real. A Social-Democracia na Europa intercede como agente imperialista que teve êxito em Portugal destruindo o processo revolucionário do 25 de Abril, como se representasse o "socialismo" e com ofertas de apoio financeiro.

Exemplo de superação do atraso e a fome

A China fez a sua revolução nacional e realizou a Grande Marcha liderada por Mao Tse tung, apoiada pela URSS e demais países socialistas, libertando-se do sistema feudal opressor e traçando o caminho para o socialismo. Conserva a filosofia dos seus antigos líderes históricos para entrar na Era Moderna e vencer a miséria da maior população nacional do planeta.

Cultiva a memória cultural de milênios da sua história e recebe as imagens do capitalismo e do socialismo como capítulos recentes. Herdeira de experiências históricas de invasões, guerras, domínio japonês, colonialismo britânico e tentativas de neocolonialismo por alguns países poderosos, a China aplica as tradições do pensamento oriental na forma como deverá adaptar-se ao convívio e intercâmbio técnico e material com o sistema capitalista internacional.

Mantém-se sem participar da dicotomia ideológica entre capitalismo e socialismo, conhecendo profundamente as contradições entre os dois sistemas, sempre procurando desenvolver as suas próprias forças dentro da lógica estabelecida no mercado enquanto introduz inovações a partir do seu conhecimento milenar

*Zillah Branco é cientista social, militante comunista, colaboradora do Vermelho e integrante do Conselho do Cebrapaz.

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  • sábado, 24 de maio de 2014

    O BRANQUEAMENTO DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

    Zillah Branco
    21/04/14

    Na comemoração dos 40 anos da Revolução de Abril, num Portugal comandado pela União Europeia unida ao FMI, assiste-se ao branqueamento da realidade histórica que em 1974 derrubou a ditadura fascista criada e mantida durante meio século por Salazar.

    O comando português desta deturpação está entregue aos meios de comunicação que promovem uma fictícia democracia de modelo neo-liberal executada por um Governo de direita herdeiro da ideologia salazarista. Tal como vem sendo adotada pela social democracia imperial, a prática da adoção de uma fachada política de esquerda para eleger chefes de Governo nos Estados Unidos e na Europa, assim como de promover conflitos sociais que abrem as portas de países susceptíveis de invasões militares apoiadas pela ONU, também em Portugal a direita veste-se de esquerda democrática anti-comunista.

    O PS de Mário Soares foi o introdutor deste método tendo enfrentado a decepção de muitos dos seus quadros verdadeiramente socialistas que abandonaram as suas fileiras ao longo dos primeiros Governos após o 25 de Abril e ainda hoje há os militantes PS que repudiam a subserviência a uma ideologia com meta imperialista. Permanece a distinção no PS de filiação social-democrata entre os que defendem princípios socialistas de liberdade, igualdade social e democracia e os que lutam pela utópica humanização do sistema capitalista que combate explicitamente o caminho revolucionário.

    Esta vocação de camaleão foi assumida pelo PS - com a auto-definição de centro-esquerda - e por seu líder Mário Soares, quando confrontado com ataques dos partidos de direita, tornando-se mais visível depois da queda de Sócrates como Primeiro Ministro vencido pela coligação do PSD/CDS-PP.

    Em véspera de eleições, e comprovada por pesquisas das tendências eleitorais praticamente iguais (em torno de 35%) tanto para o PS como para a  coligação PSD/CDS, é a vez da extrema direita vestir a camiseta democrática para atrair as franjas eleitorais que habitualmente negam a sua participação cidadã sob a forma de voto em branco, nulo ou abstenção (à volta de 40%), ou somar-se ao próprio PS para evitar qua a esquerda real se apresente unida e capaz de atrair os democratas que se sentem enganados por seus partidos ditos de centro, e mais os que se abstiveram de votar sem confiança no actual sistema que destrói as conquistas populares alcançadas com Abril.

    O agravamento da irresponsabilidade cívica dos políticos à direita de uma esquerda humanista que respeita a ética nacional  e os valores patrióticos, divide as forças políticas do centro e da direita que não se identificam com os ambiciosos de lucros fáceis, corrupção despudorada, abuso de confiança, falta de integridade pessoal e de compromisso com a independência nacional. Não querem estar misturados com oportunistas que se curvam a um poder imperial. Reconhecem, como declarou um antigo ministro de Salazar, que "a realidade é que o 25 de Abril introduziu o regime democrático e cabe-nos organizar a sociedade para atender às necessidades de desenvolvimento nacional e de vida digna da população."

    A História, algumas vezes, aproxima os adversários políticos para a defesa da honra nacional e de sua gente - "quando um valor mais alto se alevanta", registou Camões.

    Não é com esperteza barata e ignorância política que se analisa um facto histórico que revolucionou uma sociedade e substituiu um regime, reduzindo-o a um componente que foi o golpe militar apoiado por uns que foram vencidos na guerra colonial contra a Guiné Bissau, como o General Spínola, e outros (a maioria dos capitães e oficiais do MFA )que se apercebiam da injustiça da guerra que sacrificava os dois povos em conflito para satisfazer apenas as ambições de poder de um governo ditatorial que arruinava Portugal e agia impunha um regime fascista.

    Uma tese acadêmica, de autoria de Raquel Varela (que se identifica com a esquerda mais radical), aponta divergências teóricas, expostas com a honestidade da crítica histórica, e fundamenta com documentação imparcial a descrição dos fatos relatados. Não se coíbe de apontar o valor político da ação dos comunistas em Portugal, ao manterem por quarenta anos de dura clandestinidade a única fonte de resistência política à ditadura de Salazar.

    Tal resistência foi possível com a estruturação de um partido – PCP – cuja ação reivindicativa se expandiu por todo o país junto às camadas mais pobres dos trabalhadores urbanos e rurais, alimentando uma consciência política e social que não se deixou intimidar perante a feroz perseguição policial e social exercida pelo Governo ditatorial. Com esta compreensão honesta, a autora enfrenta a difícil tarefa de estabelecer um diálogo entre os grupos da extrema-esquerda e com os militantes do PCP. A intenção merece respeito, assim como a reunião de uma documentação histórica de um período que recolheu como investigadora. A perspectiva científica da historiadora é naturalmente diferente da de um militante que viveu o processo e revela a interpretação particular de uma militante da extrema-esquerda: por um lado ganha objetividade pelo distanciamento e a comparação entre várias fontes de informação, e perde, por outro, a observação do ambiente social com as suas emoções espontâneas e o conhecimento da orientação estratégica que é clandestina e não aparece nos registros dos observadores, além da subjetividade da anti-comunista.

    Em Portugal durante a Revolução dos Cravos, foram vários os agrupamentos da extrema-esquerda – MRPP, MES, PRP, LCI, LUAR, FSP – cada qual com uma origem social e ideológica particular que se consideravam “puros e radicais” contrariando o processo conduzido pelo PCP (único partido de esquerda no país, conforme refere Raquel Varela) e, consequentemente facilitando a ação contra-revolucionária encabeçada pelo PS contra o PCP.

    No contexto do livro, Raquel Varela vai repetir várias críticas feitas pelos porta-vozes da esquerda radical que acusam o PCP de “ter realizado uma política de contenção das reivindicações dos trabalhadores”. Apesar dessas acusações que negam o valor revolucionário do PCP, reconhece que “quando se dá o 25 de Abril de 1974 o PCP é o partido político mais bem organizado e aquele que tinha sobrevivido nas duras condições da clandestinidade durante a ditadura” (...) “uma organização de vanguarda com alguma influência de massas, contando entre militantes e simpatizantes, uns nove mil membros” (...) “chegando a 25 de Novembro de 1975, inquestionavelmente como um partido de massas, com cerca de cem mil militantes, influência nos principais setores operários, nos sindicatos, com participação nos Governos Provisórios e com homens da sua confiança na hierarquia militar. É o maior partido político de Portugal e uma organização imprescindível, política e militarmente, para estabilização do Estado e o início da consolidação democrática do País.”

    A REALIDADE E A HISTÓRIA NEGAM O PRECONCEITO

    Para ultrapassar as confusões que misturam os velhos preconceitos anti-comunistas com o que a história do 25 de Abril registrou como ação política e social do PCP, convém rever os documentos de Álvaro Cunhal (Obras Escolhidas, II volume, Edições Avante!) sobre a história daquele partido entre os anos 1947 e 1964 quando foi traçada a estratégia da ação comunista em Portugal para enfrentar e levar o povo a vencer o Governo fascista de Salazar. Impressiona hoje ver que a orientação ideológica que criou a organização do PCP e o traçado da estratégia de luta através de quatro décadas sob a liderança de Álvaro Cunhal, desde a sua juventude e quando ascendeu a Secretário-geral daquele partido, foi minuciosa no desenvolvimento de uma consciência popular para levar a população portuguesa a compreender a necessidade de unir esforços no sentido de derrubar a ditadura e o colonialismo, combater o fascismo e o imperialismo, fortalecer a produção e a independência nacional. O golpe só poderia ser militar para, segundo Álvaro Cunhal, vencer a força do Governo, mas deveria contar com o apoio das massas trabalhadoras organizadas em sindicatos e comissões e dos democratas de todos os matizes ideológicos que se uniam em campanhas eleitorais e em manifestações anti-fascistas. Só nessas condições o povo português poderia contar com o apoio internacional da ONU e do proletariado democrata e comunista de todo o mundo. Assim ocorreu o processo revolucionário revelado no dia 25 de Abril de 1974 e implantado no país nos primeiros cinco Governos em que o PCP participou.

    Em traços largos, em 1947 o PCP decidira superar os problemas internos que impediam uma ação integrada com a vida das massas trabalhadoras e que abrisse a possibilidade de caminhar na defesa da democracia contando com a participação de setores não comunistas mas que lutam pela independência nacional, pela melhoria das condições de vida no país para toda a população, e contra o fascismo. Neste sentido os militantes deveriam permanecer clandestinamente junto aos trabalhadores para conhecer melhor a realidade em  que viviam e difundir as formas de solidariedade do PCP apoiando as suas reivindicações fundamentais – o que foi feito com um meticuloso plano de organização regional para todo o país – e seriam estimuladas as iniciativas democráticas com reivindicações específicas dos setores militares, estudantis, das mulheres e dos sindicalistas contrários ao controle fascista imposto pelo Governo.

    Para promover a aliança organizada entre comunistas e democratas, foram formadas organizações democráticas como o MUD (Movimento unitário democrático), o MUD Juvenil e o MUNAF (Movimento de unidade nacional anti-fascista). Tiveram início várias greves de trabalhadores tanto nas cidades como nos campos, manifestações estudantis nas Universidades, lutas camponesas no Alentejo, com um número crescente de participantes inclusive monárquicos, católicos, democratas que se libertavam do cerco da ditadura. Segundo Álvaro Cunhal, não havia naquele momento uma força capaz de derrubar a ditadura e a palavra de ordem era “a unidade do povo forja-se na luta”.

    Ao mesmo tempo em que o PCP mergulhava em todos os problemas sociais de Portugal, dedicava-se ainda ao apoio à formação de quadros revolucionários, vindos das colónias, para a luta de independência dos seus respectivos países em África. A produção e divulgação de imprensa clandestina estabelecia um forte elo de ligação com a população, e a manutenção de contactos partidários internacionais com o apoio dos partidos irmãos e dos países socialistas permitia angariar formas de apoio e transmitir informações sobre a luta interna dos portugueses contra o fascismo durante a guerra e, depois, o imperialismo que o substituiu no relacionamento comercial e financeiro com Salazar.

    COERÊNCIA DO PCP COM O CAMINHO REVOLUCIONÁRIO

    Este caminho foi a origem do grande partido comunista que se revela logo nas primeiras horas do 25 de Abril de 1974 liderando o movimento sindical, que dará origem à Intersindical Nacional, os agrupamentos juvenis e movimentos democráticos unitários, tendo força para se impor ao novo governo constituído pelo Movimento das Forças Armadas levando adiante os planos de nacionalização da banca e de empresas fundamentais na economia portuguesa, da reforma agrária na zona do latifúndio e da defesa dos pequenos agricultores na zona do minifúndio e múltiplos aspectos de modernização cultural que alteraram de forma positiva o comportamento social liberto dos estreitos limites ditatoriais e puderam incentivar a adoção de critérios sociais mais comuns nos grandes países democráticos da Europa. Foram abertos novos caminhos que fundamentaram a reestruturação da educação e dos demais setores sociais do Estado com reflexos na comunicação social que passou a promover debates públicos sobre as questões nacionais. Nascia uma sociedade livre capaz de conduzir os novos destinos de Portugal sob a égide da democracia que sobrevive ainda hoje à destruição de conquistas revolucionárias alcançadas pelo 25 de Abril.

    A história clandestina que atravessou mais de quarenta anos sob terrível repressão assassina, criou o maior movimento político de Portugal com sólidas características revolucionárias e capacidade de participar (e liderar) as tendências democráticas das mais variadas origens ideológicas, que, unidas, enfraqueceram o poder fascista.

    Importante ainda é analisar os princípios básicos de organização revolucionária defendidos pelo PCP para corrigir os erros do passado. Álvaro Cunhal expõe com clareza os problemas de organização partidária derivados de comportamentos classificados como: oportunismo político - dos que confundem uma aliança política com a adesão a fórmulas que o inimigo aceita para dividir o partido - e o voluntarísmo - que envaidece o quadro político levando-o a decidir sozinho as ações do partido e impondo ao coletivo as suas idéias pessoais não discutidas.

    A ditadura de Salazar que durante a segunda grande guerra esteve ao lado de Hitler apoiando as forças fascistas de Franco, na Guerra Civil Espanhola, e fornecendo volfrâmio à Alemanha nazista produzido em Portugal, diplomaticamente aparentou neutralidade quando percebeu que a vitória seria dos aliados e dos exércitos comunistas do leste europeu. Nesse esforço camaleónico, aceite pelas forças imperialistas sobretudo inglesas e norte-americanas, mudou o seu discurso em sentido democratizado para confundir a população, sobretudo as camadas da burguesia que desejavam mudanças para poderem realizar os seus negócios sem os entraves da ditadura.

    No PCP surgiram vozes dissonantes que conduziram alguns quadros ao caminho da dissidência e outros que traíram infiltradas pelo inimigo no seio do partido. Também em outros agrupamentos, como o dos socialistas surgiu uma formação partidária em Portugal que caminhou no sentido da aliança com a ditadura para eleger os seus representantes no Parlamento, o que colidiu com os socialistas que se viram obrigados a emigrar para poderem formar um partido fora do país. Diante disto, os problemas de oportunismo e de voluntarísmo entre militantes era gravíssimo e minava dentro dos partidos a estratégia de luta unitária contra a ditadura.

    Durante o processo revolucionário de 1974, as divergências da extrema-esquerda com o PCP, habitualmente vinham destes dois desvios de conduta militante. Grupos novos liderados por intelectuais de esquerda sem a vivência popular de luta clandestina que o PCP detinha, facilmente propunham ações radicais que punham em causa as difíceis alianças com os setores sociais que apoiaram a derrubada da ditadura. Ao contrariá-los, o PCP era acusado de monolítico, burocrata e oportunista porque participava dos primeiros Governos e encaminhava gradualmente as reivindicações do povo mais desfavorecido.

    A pressa em realizar todas as conquistas no primeiro momento sempre aparece como uma característica “mais revolucionária” do grupo que a propõe do que o lento e seguro caminho que os comunistas aprenderam a seguir, tendo ao lado as demais forças democráticas actuantes. É uma crítica oportunista que Lenin já no seu tempo denominou “doença infantil do comunismo”.

    Muitas vezes brilhantes militantes entram neste caminho, por confiarem na sua capacidade teórica e de heroísmo pessoal mas que não terá seguidores ou causará enfrentamentos desnecessários com grandes riscos de esmagamento que atrasam o processo e sacrificam o povo. A criatividade de um militante tem mérito se subordinada a uma estratégia segura de luta partidária. Creio que esta matéria é do conhecimento geral, mas através dos anos e séculos, tem surgido para separar a extrema-esquerda em relação aos comunistas, sempre com prejuízo para a luta que deveria ser unida.

    EXTREMA-ESQUERDA SOMA-SE AO PS CONTRA O PCP

    Raquel Varela mostra-se surpreendida ao perceber que a política do PCP levou-o a perder controle sobre associações de trabalhadores (de duplo poder segundo a historiadora) para o PS e para a extrema-esquerda. Isto também ocorreu com cooperativas agrícolas porque a linha comunista não era favorável à distribuição dos lucros ou da terra que fomentava o individualismo entre os trabalhadores cuja força era social e garantida pela defesa do coletivo. O processo revolucionário leva muito tempo a ser preparado e mais ainda para ser consolidado.

    A única força política que não abandonou a estratégia de luta revolucionária, que não pretendeu caminhar distanciada das condições possíveis ao povo português, foi o PCP. Os antigos aliados tomaram rumos improvisados de acordo com interesses próprios e a formação teórica adotada ou os compromissos assumidos com o imperialismo. Os vários grupos radicais diferiam entre si não só por vínculos com outras estruturas políticas como pelas conhecidas infiltrações de direita.

    A luta do PS, em Portugal, pela liderança das massas, contou com o apoio do imperialismo tendo como força política europeia a Internacional Socialista e do anti-comunismo muito presente na cultura ocidental. As forças mais reacionárias aceitaram a vitória dos socialistas, conduzidos por Mário Soares para derrubar o Governo do Brigadeiro Vasco Gonçalves em 1975, destruindo as conquistas democráticas fundamentais no processo revolucionário (nacionalização da banca, intervenção em empresa de interesse do Estado, reforma agrária) e minou outros grupos democráticos com conceitos primários sobre o “perigo comunista” que assustavam a população dominada culturalmente por 50 anos de repressão e pobreza, com as lendas que atribuem aos comunistas características de monstros criminosos enquanto os socialistas afirmavam ter capacidade de tornar o sistema capitalista humanizado e democrático.

    Uma falsa acusação ao PCP, que se transformou em uma denúncia de Mário Soares a nível internacional, foi o “caso República” no sentido de “provar” que o PCP queria “acabar com a liberdade de imprensa”. Dividiu a população portuguesa (inclusive a de esquerda) alimentando uma infame campanha internacional que convenceu muitos partidos. Raquel Varela tem uma posição positiva, diferente da assumida por outros historiadores que deixam no ar a dúvida sobre a responsabilidade do PCP de conduzir a luta dos trabalhadores naquele jornal. Este foi o pretexto usado pelo PS e pelo PSD abandonarem o Governo de Vasco Gonçalves com todas as consequências que enfraqueceram a Revolução dos Cravos. A autora, no entanto, cita uma conversa de Melo Antunes com o primeiro-ministro britânico em 27/06/75, em que afirma “os comunistas foram de fato ultrapassados pelos trabalhadores, que foram mais para a esquerda”, o que revela ser de conhecimento geral que o PCP não era responsável pelo conflito.

    Em 1979, no quinto aniversário da reforma agrária comemorado com um Seminário Internacional pela Universidade Agrícola de Wageningen da Holanda, com a participação do Ministro da Agricultura holandês e professores de vários países da Europa e Estados Unidos, como Solon Barraclough da FAO, e representantes da CGTP e das UCP sobreviventes à destruição, o ex-ministro do PS, António Barreto foi duramente criticado publicamente por David Baytelman do Institut of Social Studies de Haia que conhecia a "sua tese universitária contra o capitalismo" e pelo reitor da Universidade de Oslo, Suécia, professor Herik Jacoby, "por ter sido responsável, no Ministério da Agricultura em Portugal, pela destruição do processo de reforma agrária". Barreto explicou que o fez “para evitar uma possível guerra civil ”, ao que o Reitor acrescentou: "que não houve, mas destruiu a justiça social da Revolução dos Cravos em Portugal".

    Este falso argumento da "possível guerra civil,"  foi usado no dia 20/04/14 por um dos ". capitães de Abril", Vasco Lourenço, em entrevista ao Canal 2 da RTP, para explicar a sua oposição aos comunistas que estiveram no Governo do então brigadeiro Vasco Gonçalves. Provavelmente referia-se às pressões imperialistas sobre o Governo de Mário Soares que a media europeia difundia, inventando confrontos e mortes no Alentejo, o que era desmentido pelos estudantes europeus que participavam na defesa das UCPs em Portugal e divulgavam a realidade em vários jornais de província na Holanda, Alemanha, França, Bélgica e com filmes produzidos pela britânica Thames Television.

    Ao nível das organizações de trabalhadores nas empresas e nas UCPs a conversa do PS não era tão tosca sobre o “perigo comunista” mas baseava-se na oferta imediata de compensações financeiras e ascensão socio-económica com a divisão dos lucros ou da terra e o caminho individualista que fratura a unidade de classe, ou seja, o oportunismo político usado quando fazem demagogia.

    A documentação analisada por Raquel Varela revela as dificuldades que o PCP enfrentou para manter a estratégia fundamental de luta adaptando-se à ação das demais forças que se haviam unido contra o poder da ditadura. Justamente a defesa dos princípios de uma organização revolucionária que preparou a mudança social com a participação de todas as forças, não apenas comunistas, desde a década de 40, foi vencida pela liderança que o PS exerceu apoiado pelo imperialismo americano e europeu e pelos preconceitos da extrema-esquerda com o seu habitual voluntarísmo.

    É importante distinguir as motivações diferentes entre a direção do PS e a sua própria base, assim como em relação à extrema-esquerda, na luta política e ideológica contra o PCP. No calor do processo de desenvolvimento político da Revolução dos Cravos, as competições pessoais e de grupos pela liderança popular foi permanente e poucas vezes houve a percepção de que poderiam prejudicar a estratégia ideológica que aparentemente era a mesma para toda a esquerda. Os preconceitos partidários eram estimulados e serviam de instrumento dogmático para os militantes que não tiveram maior conhecimento teórico do processo revolucionário que se consolida com respeito pelo tempo histórico necessário para conquistar a adesão dos democratas na defesa patriótica de um Portugal independente.

    As alterações que tais processos têm produzido em vários pontos do planeta constituem fundamentais pontos de apoio para a libertação mental da humanidade e a conquista de valores que se manifestam em abertura cultural, legislação e instituições sociais democráticos, combate à discriminação preconceituosa, respeito pela dignidade do cidadão e da nação.

    Não é por acaso que hoje, diante da crise que abala todo o sistema capitalista e abala o poder monopolista dos Bancos e instituições financeiras face à intransigência dos povos que já não aceitam passivamente que lhes “apertem o cinto” para salvar a elite capitalista, começa-se a ouvir na media (antes acérrima defensora da elite) e destacadas personalidades conservadoras  mas humanistas ( inclusive o Papa Francisco), críticas abertas ao sistema capitalista e às suas características criminosas que oprimem os povos.


    Zillah Branco
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    segunda-feira, 5 de maio de 2014

    O Estado no Brasil resiste à democracia

    A estrutura do Estado está colada ao sistema capitalista vigente pela definição do poder pessoal hierárquico que a burocracia assegura. Por um lado não foi alterada a "cultura oligárquica" predominante na sociedade e os direitos de cidadania não foram adotados institucionalmente. Existem e são impostos pela força dos movimentos sociais e apoiados por partidos de esquerda com representação nas estruturas políticas nacionais. 


    A Presidência da República tem o seu poder dependente da composição partidária do Governo e a sua ação em defesa dos interesses dos cidadãos, portanto da democracia, só prevalece com o apoio dos movimentos sociais e forças de esquerda integrados na estrutura do Estado.

    Um exemplo na área da comunicação social foi a criação dos canais de televisão gratuitos -tv justiça, tvescola, tvsaúde - que expõem com liberdade as informações mais avançadas mundialmente nas respectivas áreas de conhecimento, promove debates e pesquisas sobre a realidade vivida na sociedade brasileira. Observa-se, no convívio diário com os serviços públicos das mesmas áreas - setores do INSS, SUS, escolas - que na maioria das vezes o comportamento dos funcionários públicos não corresponde aos princípios democráticos e de fundamentação teórica enunciados pelo Governo através dos canais de tv abertos ou de seus discursos oficiais. A contradição entre o ideal e o real existe passados 12 anos da primeira eleição que levou Lula à Presidência do Brasil.

    Há mudanças positivas que vão sendo institucionalizadas, sempre que a massa social apoia e exige, e os órgãos de poder municipal adotam: a bolsa família, o atendimento médico e escolar nas regiões antes abandonadas do país, a criação de cooperativas de produção rural, a expansão de redes de distribuição de água e de energia em localidades mais distantes, as quotas raciais nos cursos superiores, a criação de escolas de formação artística e técnica em zonas sociais marginalizadas, etc.

    No entanto, tais mudanças não se revelam dentro das estruturas dos ministérios que continuam a agir como no velho sistema oligárquico de tendência conservadora e elitista onde o cidadão mais carente é tratado sem qualquer respeito pela sua condição e os que exigem uma conduta democrática sofrem represálias e não conseguem solucionar os seus problemas. Em todos os setores federais que prestam serviços públicos sociais o atendimento humilhante e discriminatório predomina, com raras exceções pessoais de funcionários dotados de consciência de cidadania que têm que manter esta atitude de forma clandestina para não ser prejudicado por denunciantes ou chefes internos do serviço.

    Constatei pessoalmente as situações que refiro acima, tanto em agência do INSS como do SUS de uma pequena cidade do litoral. Durante anos tentei obter acompanhamento médico mas nunca consegui ultrapassar o poder de um enfermeiro autoritário que intermediava o cliente com o médico frequentemente ausente. No INSS, depois de oito anos de descaso recorri a um Juizado Especial Federal que levou 3 anos para publicar uma Sentença Judicial que foi desprezada e contestada pelo INSS que "forjou" uma informação contraditória com as que antes deram e consta do processo, recorrendo a um Tribunal onde eu deveria ser representada por um advogado defensor. O JEF ficou impotente e a Sentença por ele emitida perdeu o valor. Como resultado, apesar de eu ter a soma de 204 meses de comprovados descontos à Previdência (17 anos) – no Brasi, Chile e Portugal, que têm convênios para somar os benefícios devidos ao trabalhador), e fora os muitos meses de desemprego derivado da necessidade de emigrar durante a Ditadura de 1964 no Brasil e de 1973 no Chile, obtive uma aposentadoria por idade equivalente a um terço do salário mínimo com o direito a receber em Portugal um complemento de subsistência de valor equivalente. Para poder usufruir de algum conforto, vi-me forçada a emigrar aos 76 anos pondo à venda a minha casa, e poder utilizar o que restou do patrimônio que constituí com o meu trabalho em funções de técnica de formação universitária desde os 19 anos para manter minha família. Certamente muitos cidadãos brasileiros sofreram as mesmas injustiças, muitos deles em piores situações de saúde e de vida.

    No entanto tive oportunidades de conhecer alguns funcionários com consciência de cidadania que procuravam ajudar o utente do serviço público a procurar formas de apoio através de contactos com Ouvidorias. Mas, de forma geral, a boa vontade permanecia impotente perante a teia de poderes contraditórios nas estruturas ministeriais. O funcionário "típico" do poder do Estado é o burocrata que humilha o cidadão com comentários jocosos e repetidas exigências de novos documentos desnecessários e marcação de novos atendimentos.

    Como emigrante em Portugal, conheci uma criação inovadora do MNE que oferece uma rede de funcionários cuja função é ajudar o emigrante brasileiro com vínculo direto aos vários serviços públicos. Além de evitarem as voltas infindas pelos sites de cada Ministério que iludem o cidadão com indicações inúteis e, algumas vezes, com endereços de correio errados, agem com eficiência e boa vontade contrariando a fórmula do burocrata tradicional da oligarquia. Depois de esperar uma resposta a uma solicitação de reembolso a que tinha direito no INSS protocolada em 06/07/12 sem êxito até 02/05/14, obtive a solução em duas horas depois de ter falado com a funcionária do Organismo de Ligação APS que resultou de um Acordo do Brasil e Portugal feito pelo Itamaraty.

    Nem sempre temos a sorte de encontrar um funcionário habilitado e com consciência de cidadania, pois há uma herança pesada de um passado oligárquico ainda recente. Mas, nota-se que uma nova geração de funcionários com princípios democráticos está sendo admitida em alguns serviços públicos que não constituem feudos de forças políticas oportunistas que se aliam eleitoralmente aos governantes democráticos. Para quem luta pela transformação do Estado Brasileiro em um Estado Social, é uma esperança reconfortante.

    As contradições que o cidadão brasileiro, frequentador dos balcões do Serviço Público, assiste desde a primeira eleição de Lula traduz-se na melhoria do atendimento pessoal nas agências da Receita Federal que se preocuparam em reciclar os funcionários nos moldes do respeito humano, solidariedade e simpatia. As agências do INSS, ao contrário, investiram no conforto e modernização das salas de espera e afixaram avisos ameaçadores de prisão a quem faltar com o respeito aos funcionários. A diferença só pode ser devida á preocupação das Finanças em induzir o cidadão a pagar e não fugir ao registro das suas atividades, enquanto que o INSS pretende retardar ou mesmo se furtar ao pagamento do que os cidadãos têm direito. Esta triste constatação aplica-se também aos serviços médicos de saúde, apesar do esforço pessoal de alguns funcionários, enfermeiros e médicos que fazem grande esforço para superar as carências e os privilégios que existem na estrutura do MS.

    Nas escolas é mais comum encontrar um atendimento positivo, com consciência de cidadania, sobretudo por parte dos professores que ganham um salário insuficiente para o muito que estudam fazendo reciclagem, trabalham em locais inadaptados, enfrentam os problemas de violência que atinge toda a sociedade e deforma a cultura da juventude. É neste setor social do Estado em que o cidadão comum melhor se identifica, por sofrer de forma igual os problemas da má distribuição de rendas e as pressões do sistema capitalista que promove um falso e desequilibrado modelo de vida através da publicidade e das deturpadas notícias da grande mídia.

    É urgente construir um retrato da realidade social brasileira e das limitações da brilhante fase de desenvolvimento econômico do país que ainda é dominado pelos privilegiados do sistema e aumenta o poder da elite financeira.

    O MST tem alterado o seu projeto de Reforma Agrária adequando-se à realidade viável que a Nação Brasileira oferece. Sendo um importante movimento social com grande força popular, demonstra uma maturidade ideológica admirável que contradiz os voluntaristas que preconizam ações radicais mal planejadas que acabam por favorecer a direita ligada ao imperialismo.

    Stedile disse: como deixou de sr possível a reforma agrária clássica por imposição do agro-negócio que industrializou a produção agrícola, das sementes aos fertilizantes e às técnicas de plantio e colheita, (...) "Diante dessa nova realidade agrária, com o domínio do capital internacional e financeiro, fizemos um intenso debate dentro do MST (...) aprovamos essa formulação da necessidade de uma reforma agrária popular."

    "Reforma agrária popular porque agora ela precisa atender não só as necessidades dos camponeses sem terra, que precisam trabalhar. Mas as necessidades de todo o povo. E o povo precisa de alimentos, alimentos sadios, sem venenos, precisa de emprego, precisa de desenvolvimento da agroindústria, precisa de educação e cultura. Então, o nosso programa de reforma agrária de novo tipo, parte da necessidade de democratização da propriedade da terra, fixando limites, e propõe a reorganização da produção agrícola, priorizando a produção de alimentos sem venenos. Para isso precisamos adotar e universalizar uma nova matriz tecnológica que é a agroecologia."